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- Cuidado Carolina, é perigoso! Dizia meu pai quanto eu tentava desesperadamente descer para comprar balas na banca em frente ao emblemático edifício. Ele tinha razão, e eu sabia. Tinha a imagem gravada na memória de uma jovem que levava alguns livros nos braços parada no meio de 3 outros jovens, um deles agachado olhando debaixo da saia dela. Lembro da minha indignação ao perceber que ela chorava e que ninguém, absolutamente ninguém, podia fazer nada. Eles estavam armados.
Medo e admiração. Um verdadeiro amor platônico por toda aquela região. Um amor que me levava a um vertigo incrível e inevitável.
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As histórias iam aparecendo diante de meus olhos. Eu mal podia falar, faltava ar, faltava tudo.
Cracolândia. A zona é perto de onde fica a Estação da Luz, mas no pedaço de rua que a coisa realmente pega eu nunca havia estado. E a pedidos me levaram. Eu vi, arregalei meus olhos para não perder nem um movimento. E tudo pareceu acontecer em câmera lenta. Todos os rostos retorcidos, perdidos, todos os cachimbos, todos os cigarros e cobertores, crianças, meninas e toda a paranóia de quem não sabe mais seu lugar no mundo.
Ricardo, 8 anos. Estava cansado. Seus pequenos ossos marcavam a camiseta velha e o moletom cheio de mucos nas mangas. Ele dizia que seu pulmão ardia. Tinha fome de comida e não da pobre barrinha de cereal que lhe ofereceram. Eu, no ímpeto ridículo de querer salvar que seja uma formiga naquele antro perdido, me agarrei no Ricardo e junto a um colega levei-o até o bar da frente. Ricardo não podia entrar, só nós. O cozinheiro abriu uma exceção e Ricardo pode ficar ali conosco. Pagamos um prato de calabresa e arroz, a pedidos do pequeno. Ficou combinado entre nós que Ricardo esperaria seu prato e comeria junto à parede onde pintavam o VLOK. Alguns minutos depois de chegarmos de volta à parede, chega Ricardo, chorando e levando apenas uma garrafa pet de suco das duas que havíamos comprado.
- O dono do bar me deu com a garrafa na cabeça, disse pra eu sumir de lá.
O choro era desesperador. Eu sai correndo, e o Gustavo atrás de mim, em direção ao bar.
- Carol, cuidado! Ele pode estar com gente mais velha que vai te roubar ou fazer alguma maldade com você.
O Gustavo sabe o que pode acontecer com quem não toma as devidas precauções em situações como esta. Já eu só pensava no Ricardo, estava com o coração na mão, queria voar na cabeça do tal homem do bar. E fui, junto com o Gustavo, saber o que tinha acontecido. O dono do bar negou, obviamente, e me entregou a bolsa de comida. Era claro que o menino estava falando a verdade, aquele homem com olhar gelado e maldoso já não tinha coração e não posso culpar-lo. Com certeza ele já foi testemunha de tantas desgraças por ali que já julga estas pobres crianças como perdidas. Será?
Voltei rapidamente para a parede pintada com a comida nas mãos, mas Ricardo havia desaparecido. Ele foi embora, foi embora e eu, mais uma vez, não pude fazer nada, absolutamente nada, apenas sentir de novo o vazio no peito da nossa pura impotência.
Um comentário:
Conhecer a verdadeira São Paulo, o verdadeiro Brasil doem os olhos...o coração..a alma...
Quantos Ricardo não existem por ae.
Quantos donos de bares não existem.
E quantos de nós, fechamos os olhos para muita coisa. E por muitas vezes ficamos cegos com outras milhares.
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